Razões apresentadas pela ANAPE no STF na Reclamação do Estado de SE em defesa de nossa autonomia

E. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
EXMO. MIN. RELATOR DA RECLAMAÇÃO 7607/SE
Protocolo: 2009/7162
Relator: Min. Eros Grau
Reclamante: Estado de Sergipe
Reclamado: Juízo da 19ª Vara Cível de Aracaju

A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES DE ESTADO-ANAPE, entidade de classe de âmbito nacional, sediada no SCS, quadra 01, bloco “E”, sala 1001, Ed. Ceará, Brasília-DF, inscrita no CNPJ sob o nº , vem, representada por seu Presidente e Procurador, abaixo assinado, com endereço antes transcrito, respeitosamente, requerer sua admissão no processo constante da epígrafe, aparelhado pelo ESTADO DE SERGIPE em face do JUÍZO DA 19ª VARA CÍVEL DE ARACAJU, com fundamento no art. 15 da Lei 8.038/90 e nas razões adiante expostas:

1 – Surgimento e limites da questão

No toar da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394/96), o Estado de Sergipe criou duas carreiras distintas de Professor: uma com a incumbência de lecionar aos alunos do ensino infantil e das primeiras quatro séries do ensino fundamental, nominada “Professor I”; outra responsável, prioritariamente, pelo ensino nos demais níveis, Professor II.

Estabeleceu requisitos diversos de ingresso, também na esteira da LDB, bastando o ensino médio aos primeiros mas exigindo a colação em grau superior aos aspirantes à última. Vejam-se as legislações:

Lei de Diretrizes e Bases:

“Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal.”

LCE 61/2001 (acompanha a presente peça a versão original já alterada pela legislação revogadora – extraída do sitio da Assembléia Legislativa de Sergipe – www.al.s.gov.br)

Art. 13 – A Carreira regulamentada no Plano de que trata esta Lei Complementar é organizada segundo a habilitação exigida, nos cursos Superior e Médio na Modalidade Normal, para o provimento dos Níveis, como segue:

I – Nível I: curso médio na modalidade NORMAL;

II – Nível II: graduação em licenciatura plena ou graduação em pedagogia, admitida a habilitação especifica obtida em programas de formação pedagógica para portadores de diploma de educação superior, nos termos da lei;…..

Parágrafo único – As especificações dos cargos que constituem as Carreiras constam do Apêndice I desta Lei Complementar.”

“Art. 15 – ……

§ 1º – A comprovação da titulação ou habilitação exigida para o exercício do cargo é condição para a posse.

§ 2º- O ingresso na Carreira do Magistério Público Estadual dar-se-á na Classe A e no Nível compatível com a habilitação do profissional do magistério, segundo o que estabelece o art. 13 desta Lei Complementar, de acordo com a formação exigida no respectivo edital de concurso público.

Ocorre que a mesma LCE 61/2001 previu, no seu art. 18, a progressão “de nível”, consistente na passagem de uma carreira a outra, em virtude da obtenção do titulo exigido pela superior:

“Art. 18 – A progressão funcional no cargo de Professor de Educação Básica e no de Pedagogo, ocorre por:….

II – promoção de Nível a Nível, mediante a obtenção de titulação acadêmica, exigida pelos Níveis da Carreira, com a comprovação da qualificação decorrente da habilitação exigida pelo Nível objeto da promoção.”

Mais grave, a migração independe de claros ou necessidade de serviço, desde a Lei 146/2007, que deu a redação transcrita acima, bastando que se obtenha a graduação superior. Eis a redação anterior:

“II – promoção de Nível a Nível, mediante a obtenção de titulação acadêmica exigida pelos Níveis da Carreira, com a comprovação da qualificação decorrente da titulação e/ou habilitação exigida pelo nível objeto da promoção, observado, para esse nível, o número de vagas fixado anualmente em lei de iniciativa do Poder Executivo, de acordo com a necessidade da Rede Pública Estadual de Ensino.” ( redação dada pela LC 126/06e revogada pela LC 146/07)

Persistem, ainda hoje, em Sergipe, duas formas de provimento aos cargos de Professor II. Através de concurso público ou por acesso, a partir do cargo de Professor I.

A despeito da regra permissiva, o Governo não vinha garantindo as ascensões e, quando as permitia, passava a pagar vencimentos correspondentes a partir da publicação do ato promotor da ascensão.

Os professores, por isso irresignados, demandaram contra o Estado, buscando garantir a aplicação da lei vigente.

Ao apresentar a defesa do Ente Político, a Procuradoria Geral arguiu a inconstitucionalidade dos dispositivos permissivos do acesso, tese acolhida em 1º grau de jurisdição.

Em sede de apelação a Câmara cível suscitou o incidente, registrado com o nº 008/2008/TJ-Se, concluído com o afastamento do vício.

Proferida a decisão, o Governador expediu, em 03 de julho de 2008, correspondência eletrônica ao Procurador Geral, ordenando a dispensa recursal.

Depois de tentativas frustradas de dissuadi-lo desse propósito, o Chefe da Procuradoria estatal fez circular, em 03 de outubro seguinte(três meses após), a CI 44/2008, transmitindo a ordem e concretizando-a.

A correspondência interna referida não agregou, às razões apresentadas por sua Excelência, nenhuma outra. Ao revés, cingiu-se a transcrevê-la, e, em seguida, expedir comandos para sua observância.

Valendo-se do instrumento conferido pelo art. 5º, LXXIII, da Constituição da República, o ora interessado aparelhou ação popular constitucional, para ver declarada nulas as ordens e permitir o trânsito regular dos processos. Pediu, ainda, a concessão de liminar, objetivando o imediato sobrestamento dessas mesmas ordens, justificada porque, enquanto pendentes, a Procuradoria não interpunha recursos e as decisões transitavam em julgado.

O MM. Juízo da 19ª Vara Cível de Aracaju deferiu o pleito liminar, fundamentando sua decisão, relativamente ao fumus boni iures, na independência profissional do Procurador.

A despeito de ter o i. Juiz invocado todos os dispositivos pertinentes às prerrogativas funcionais do advogado, o Ente Político apresentou a Reclamação sob foco, sustentando ofensa ao decidido no bojo da ADI 470/AM.

2 – Admissão do interessado no processo

A prevalecer a tese veiculada na Reclamação, todo os Procuradores de Estado de todas as Unidades estaduais e do DF, verão tolhidas suas competências.

A decisão, pois, não toca apenas Sergipe e a carreira de Procuradores daquele Ente Político, antes refletindo, diretamente, em todas as congêneres, em cada Procurador.

Representando essas diversas carreiras e seus Procuradores, incumbe à ANAPE velar pelas prerrogativas funcionais de seus associados, sendo esta, inclusive, sua razão de existir.

Pertinente, pois, sua integração na lide, ostentando a qualidade de terceiro interessado.

3 – Observações iniciais

A decisão reclamada não conferiu aos Procuradores de Estado prerrogativas próprias do Ministério Público. Ao contrário, afirmou tratar-se de advogados públicos, dotados da independência profissional assegurada pelo art. 133 da Constituição, 2º e 18 do EOAB.

A controvérsia, em verdade, centra-se na compreensão do papel dos Procuradores e nos limites de sua independência profissional.

Os Procuradores do Estado tutelam os interesses do Estado ou os do Governo ? No conflito entre os dois, poderá o Procurador colocar-se ao lado do primeiro ? Ou deverá faze-lo ? O Governador pode, em vista de sua posição de hierarca do Executivo, interferir no exercício das competências constitucionais conferidas aos Procuradores, impedindo um parecer, uma defesa ou um recurso, ou, ainda, impondo-lhe que diga isso ou aquilo ?

São respostas a serem dadas nesse caso, apesar dos estreitos limites em que se concentram as discussões.

4 – Contexto da ordem combatida via ação popular – ilicitude – a propriedade da decisão – conformação ao decidido na ADI 470/AM

Para a compreensão da controvérsia posta ao Supremo, imperioso voltar-se à origem do ato, apurando suas conseqüências e o que o juízo reclamado desejou evitar.

Transcreve-se, abaixo, a mencionada CI 44/2008, da pena do Procurador Geral. Através dela a Procuradoria foi cientificada sobre a proibição imposta pelo Governador.

“Em referência aos processos em curso que tenham por objeto o pagamento decorrente da progressão vertical do magistério, levo ao seu conhecimento determinação exarada pelo Exmo. Sr. Governador do Estado através da comunicação eletrônica (documento anexo), cuja transcrição é imperativa:

‘Sr. Procurador, considerando que o Pleno do Tribunal de Justiça, por ampla maioria, um único voto contrário, decidiu favoravelmente aos propositores de ações contra o Estado, na questão do direito à progressão vertical; considerando, ademais, que, ainda que incidentalmente, o pleno daquele sodalício enfrentou a constitucionalidade da norma concessiva, concluindo pela sua adequação ao regime constitucional da Carta de 1988; e tendo em vista que sancionei a lei aprovada pela Assembléia Legislativa regulando a concessão do direito ao magistério público estadual, creio ser o caso de determinar, como de fato determino, a dispensa recursal.

Move-me, além das razões acima referidas, a compreensão de que a utilização do recurso para guerrear a decisão prolatada pela Egrégia Corte de Justiça do nosso Estado criaria um clima de insegurança jurídica que se refletiria de imediato entre os integrantes do magistério público sergipano, propiciando suspensão de aulas, movimentos paredistas e grave instabilidade administrativa na pasta da Educação. Além do mais, provocaria profunda confusão, haja vista a edição de lei retro-mencionada, passando a idéia de que o Estado por uma mão concede o direito, na forma da lei, e por outra contesta-o, pela via do recurso que por acaso manejasse’ Atenciosamente, Marcelo Deda, Governador do Estado (sic)

Diante do exposto e com fundamento no Artigo 7º, inciso VII, da Lei Complementar 27/1996, nos processos relativos à progressão vertical do magistério, deverão ser adotadas as seguintes providências:

1. Sejam encaminhados ao Gabinete do Procurador Geral do Estado os processos em que tenha havido interposição de recursos aos Tribunais Superiores questionando, no mérito, a decisão proferida em consonância com o entendimento plenário do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, reconhecedor da constitucionalidade da progressão vertical do magistério;

2. Não sejam interpostos recursos que tenham como questão de mérito o inconformismo com a decisão proferida em consonância com o entendimento plenário do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, reconhecedor da Constitucionalidade da progressão vertical.” (destaques inseridos)

Não retomaremos o histórico do incidente de inconstitucionalidade 008/2008, mas foi para impedir ataque ao conteúdo da decisão ali proferida que o Sr. Governador baixou a determinação.

Vale dizer, o ato objetivou consolidar forma de provimento derivado contrário à Constituição e aos inúmeros julgados, acerca do tema, produzidos por essa e. Corte.

O único meio para atingir esse objetivo era obstaculizando a chegada dos recursos extraordinários ao Supremo Tribunal Federal.

Ocorre que o Governador extrapolou, muito, sua competência. Não se lhe permite gerir sem absoluto respeito à Constituição, buscando as alternativas para os problemas estatais ao seu exclusivo arbítrio.

No Estado de direito, os atos administrativos são válidas, apenas e tão somente, se corretos no fundamento, no meio e na finalidade, e, evidentemente, tais acertos não se verificam no caso.

Esse o contexto no qual o i Juízo reclamado proferiu a decisão, garantindo aos Procuradores o exercício do direito/dever de interpor recursos para defesa do Estado.

A interlocutória, entretanto, não buscou amparo nas prerrogativas do Ministério Público, mas na da advocacia e na função pública cometida aos Procuradores de Estado.

Na ADI 470/AM, não foi afirmado qualquer limite à atuação do Procurador enquanto na defesa do patrimônio estatal. Ao contrário, o receio de conferir-lhes independência ampla era, precisamente, deixar sem defesa o Ente Público, hipótese que se tornaria configurável caso estivesse livre para concordar com o autor de uma ação, para repetir o exemplo aventado, na ocasião.

Há, ao revés de contrariedade, conformação com o posicionamento do Supremo sobre a matéria. Aprofundemo-la, em seguida:

5 – Independência profissional – liberdade para cumprimento de obrigações – extensão no Estado de direito – função essencial à justiça

A garantia consignada na decisão objeto de ataque foi de liberdade ao Procurador para defender o Ente que o remunera. Não para decidir se a parte ex adversa estava certa ou errada. Essa uma prerrogativa do Juízo.

Onde está, é de questionar-se, o desrespeito à posição já externada pelo Supremo Tribunal Federal ? Terá afirmado essa Corte que, no seu desempenho profissional, os Procuradores estão subordinados ao que decidir o Governador ?

Não foi essa a leitura feita das decisões até aqui proferidas e, justamente o oposto, lê-se nos votos externados, na ADI 470/AM e em tantos outros em que carreira de advogado público esteve no foco, o reconhecimento de uma advocacia de Estado, obrigada a tutelar os interesses do Ente que “a remunera”.

Imaginando, para efeito de argumentação, que esteja certo o reclamante e o Governador possa proibir ou interferir no mérito de recursos – a fortiori também poderá faze-lo quando a atividade for de consultoria – qual a importância da carreira de Procuradores ? Por que teriam sido tratados diretamente pela Constituição ? Por que não se admitiu que a defesa e consultoria fossem patrocinadas por ocupantes de cargo em comissão ?

Há um sentido para o preceito do art. 132 e ele é muito claro. No âmbito interno da Administração, o Procurador é a única autoridade competente para, enquanto consultor, afirmar se determinada conduta, ato contrato, etc., é lícita, e, atuando em Juízo, defender o Estado com todas as armas conferidas pelo sistema jurídico, respeitados, sempre, limites éticos.

A essencialidade dos Procuradores à Justiça reside, precisamente, nesse atuar parcial, tanto quanto o faz a parte adversária, para permitir ao Judiciário uma decisão equilibrada, após colhidos todos os elementos da tese e antítese.

Se o Procurador não defender o Estado, quem o fará ? Será ele, justo ele, cujos interesses são indisponíveis, obrigado a manter-se revel. O Governador detém essa prerrogativa ?

A resposta parece óbvia. Sob ótica mais pragmática, o Advogado Público está obrigado a recorrer, sempre que couber recurso (não se aparelhará RE em face de decisão tomada à luz de norma local, exclusivamente) e for ele viável, entendida a viabilidade como inexistência de jurisprudência firme no sentido antagônico ao defendido pelo Ente Político.

Impedi-lo de agir, no caso de fundo ensejador da reclamação, em que a jurisprudência do Supremo é torrencialmente favorável à tese estatal, foi mais do que malferir a independência técnica, assegurada na ADI 470/AM, implicou proibição de exercício de um dever constitucional.

O Juízo foi categórico ao afirmar que defender o Estado é uma obrigação e no exercício desse múnus de defesa o Procurador é independente. Nada mais consentâneo com o art. 132 e as decisões do STF sobre a questão.

Sem medo de errar, o desrespeito ao Supremo partiu precisamente do Governador, que, além de tentar impedir-lhe(ao Supremo) o exercício da jurisdição constitucional, obrigou Procuradores a renunciar ao interesse público.

6 – Divisão de competências – Estado democrático de direito – sujeição do Governador à Constituição – limites dos Procuradores

Poucas coisas serão prejudiciais à Administração quanto um Procurador político. Fidelidade partidária, nesse caso, lança-lo-á a emperrar o governo se a ele fizer oposição e viabilizar irresponsavelmente se houver comunhão ideológico/partidária.

Quem decide os rumos políticos do Estado é o Governador. Nessa seara a participação do Procurador restringe-se a apontar ilegalidades de ações pontuais.

Quando, diversamente, o que se está em jogo é a avaliação de legalidade de um ato ou a defesa do Estado, a interferência governamental é indevida.

Não pode o governante ordenar que um ato seja praticado de uma determinada forma se não possui competência para praticá-lo diretamente.

De nada adiantaria a atribuição de competência exclusiva para consultoria e representação à Procuradoria se uma autoridade incompetente pudesse determinar sua conduta. Fosse assim, a competência seria diretamente do Governador, que a delegaria.

Não é o caso. Delega-se o que tem e o Governador, por opção constituinte, não possui a prerrogativa de consultoria e representação. Não a possuindo, não pode invadir o exercício de quem a possui, usurpando, indiretamente, essa determinada competência.

Não é passível de discussão que compete aos Procuradores de carreira a representação do Estado, e que qualquer norma, de Constituição estadual ou lei, alterante dessa competência padece do vício de validade.

Teve-se, pois, uma usurpação de competência afastada pelo Juízo reclamado. Nenhuma transgressão às decisões do Supremo, sendo incompreensível a diatribe contra as prerrogativas dos Procuradores de Estado.

7 – Pedido

Diante do exposto, requer o interessado:

sua admissão nesse processo, na qualidade de terceiro interessado;
a intimação do Procurador Geral da República, especialmente em vista das inconstitucionalidades apontadas no ato gênese de toda a questão,
o improvimento da reclamação
P. Deferimento

Brasília-DF, 11 de fevereiro de 2009

Ronald Christian Alves Bicca

OAB-DF