Aglomerações atestam gravidade da crise existencial do Estado brasileiro

A tradicional virada de ano sempre foi um momento de descontração e abrandamento dos problemas do ano que se vai, mas desta vez as questões sobre a pandemia da Covid-19 não ficaram no passado. Transcenderam o calendário e adentraram 2021 com uma incômoda divisão entre os que se reservaram e evitaram festas de fim de ano e os que se aglomeraram e continuam vivendo como se o coronavírus tivesse ficado em 2020.
Autoridades públicas recomendaram distanciamento, isolaram áreas e baixaram normas regulamentares como instrumentos para evitar mais adoecimento e mortes. Porém, de astros a pessoas comuns, de norte a sul, não foram poucos os exemplos de aglomeração e baixa adesão às ordens estatais antes, durante e depois da passagem do ano, transmitidos ao vivo em redes sociais como verdadeiros troféus pela transgressão social.

Numa visão dissociada da solidariedade e valores coletivos, a consciência interna do indivíduo em seguir as regras sociais pode até ser a ele reservada exclusivamente, mas sua saúde, física e mental, está incluída num dever estatal. Compete ao Estado prover, cuidar e preservar a saúde pública, sem fazer qualquer distinção, seja do rico ou do pobre, de quem usa ou não usa máscara, de quem se reclui em seu lar ou de quem declara o fim da pandemia.
Para tanto, o Estado deve planejar e executar suas políticas, com a amplitude constitucional a ele reservada, usando os meios legais para fazer valer suas competências, não podendo reservar ao indivíduo, por sua consciência e escolha individual, a eficácia das ações estatais de controle sanitário. Em outras palavras, em matéria de saúde pública, os atos estatais não estão condicionados à concordância social.
No caso, mais que evidenciar a ausência de uma cidadania coletiva, as aglomerações atestam ser muito grave a crise existencial do Estado. Se seu poder de mandar e fazer-se obedecer já foi a base de uma soberania interna, as praias e bares lotados, as festas anunciadas e as medidas de distanciamento solenemente ignoradas são a ilustração grotesca de que o Estado já não impõe ordem, não inibe, não executa tampouco fiscaliza suas próprias regras, assistindo ao caos em vez de evitá-lo. Uma prova real de um modelo que precisa ser não apenas reconstruído: o Estado deve se reinventar.

Ordem ou anarquia? O que prevalecerá? Na expectativa da imunização em massa contra a Covid-19, qual será a vacina que o Estado tomará para restaurar sua combalida saúde? Seu refazimento soa como um daqueles muitos desejos que se faz no alvorecer de um novo ano: às vezes ingênuos, impalpáveis ou quase inalcançáveis, mas sempre vívidos e renovados pela esperança que igualmente se refaz pela singela mudança do calendário, movendo-nos adiante e por entre a utopia, que se realizará se for a escolha geral resultante numa ação coletiva. Mas será?

O autor é procurador do Estado, presidente da Associação dos Procuradores do Estado do Espírito Santo e mestrando em Direito pela FDV.